O
ataque de um tubarão a um surfista, ao vivo, pela televisão, faz renascer um
dos temores clássicos de nosso tempo, multiplicado pelo cinema. As estatísticas
mostram que a preocupação é exagerada
Por: Pieter
Zalis e Renata Lucchesi
REVISTA
VEJA
O HOMEM
E O PEIXE – O australiano Mick Fanning, tricampeão mundial de surfe, atacado
pelo tubarão-branco na África do Sul(VEJA.com/AFP)
Para
Gabriel García Márquez (1927-2014), capaz de criar inesquecíveis cidades
imaginárias e personagens fantásticos, delicado mesmo era olhar para o
comportamento banal do ser humano. Escreveu o Nobel de Literatura em 1980:
"O único medo que nós, latinos, confessamos sem vergonha e até com um
certo orgulho machista é o medo de avião. Talvez porque seja um medo diferente,
que não existe desde nossas origens, como o medo do escuro ou o próprio medo de
que se perceba que sentimos medo. Pelo contrário: o medo de avião é o mais
recente de todos, pois só existe a partir do momento em que se inventou a
ciência de voar, há apenas 77 anos". O medo de tubarões é ancestral. Há
relatos da ferocidade dos cães marinhos em textos da Grécia antiga. O primeiro
relato de um ataque data de 492 a.C., com a descrição da suposta aparição de um
monstro marinho que, sozinho, foi capaz de devorar uma frota inteira de
militares persas durante a guerra entre as duas civilizações. Superstições e
lendas de culturas ao redor do mundo, dos aborígines da Austrália às tribos
xosas da África do Sul, são povoadas pela dentição oblíqua e serrilhada dos peixes
de esqueleto cartilaginoso. Atribui-se a origem etimológica da palavra shark,
em inglês, inicialmente usada por um navegador britânico no século XVI, ao
alemão Schorck, "o predador, aquele que ataca os outros", variante de
Schurke, "vilão, canalha". Não por acaso, tubarão é também o
"negociante ganancioso, o indivíduo inescrupuloso que obtém cargos
rendosos".
O
tubarão, enfim, nunca teve vida boa no imaginário do ser humano, embora, das
mais de 400 espécies que habitam os oceanos, apenas três realmente ataquem
gente de carne e osso com frequência - o tubarão-branco, o tubarão-cabeça-chata
e o tubarão-tigre. Na semana passada, uma cena que parece ter sido extraída do
arrasa-quarteirão Tubarão, de Steven Spielberg, de 1975, fundador de um gênero
do cinema e refundador de um pavor, realimentou os temores. Numa das etapas da
Liga Mundial de Surfe, em Jeffreys Bay, na África do Sul - a poucos quilômetros
de Port Elizabeth, onde a seleção brasileira foi mordida pela Holanda na Copa
do Mundo de 2010 -, o australiano Mick Fanning, de 1,77 metro, tricampeão
mundial nas ondas, foi espetacularmente atacado por um tubarão-branco de pelo
menos 3,5 metros. "Tive o instinto de que havia alguma coisa atrás de mim,
ela bateu na minha prancha e de repente estava ali ao meu lado", contou.
"Senti como se tivesse sido chutado, dei dois socos para me livrar. Não
posso acreditar. Estou inteiro, não há nada de errado comigo. Ainda estou
delirando." Foi assustador para Fanning, e também para quem acompanhava a
bateria pela televisão, ver a presa e o predador, o homem e a barbatana dorsal
do bicho. E voltou com tudo uma pergunta que nunca quis calar: é para ter medo
de tubarões? Ou, em outros termos, qual é o risco de alguém no mar ser atacado
pelo peixão? Estatisticamente, reduzidíssimo. Mas a selacofobia - eis o nome
que se dá ao medo de tubarões - não é vencida assim tão facilmente.
Fanning,
ainda atônito, resumiu sua aventura em palavras certeiras: "Fui azarado,
mas sortudo". Sortudo porque são raríssimos os casos de vítimas que saem
ilesas depois da abordagem de um tubarão-branco - ele domina, com 314 casos, o
ranking global de ataques em que foi possível identificar a espécie (quase o
triplo do segundo colocado, o tubarão-tigre) e encontra, na costa da África do
Sul, a abundância de focas e outros mamíferos marinhos que são a base de sua
cadeia alimentar. Fanning foi azarado porque os números gritam. Pesquisadores
americanos da Universidade da Flórida compararam - com base no número de mortes
em 2003, na expectativa de vida americana e no total da população nos Estados
Unidos - a probabilidade de humanos morrerem vítimas de tubarões e outros
riscos. A conclusão é que, antes de nos preocuparmos com as feras
cartilaginosas ao ir à praia, devemos ficar muito mais precavidos, por exemplo,
contra raios e o próprio mar. Segundo a pesquisa, uma morte por ataque de
tubarão ocorre a cada 3 748 067 mortes. O índice de fatalidade dos atingidos
por raios é de uma a cada 79 746 mortes. Por afogamento, a
proporção é de uma para 1 134. Os riscos podem estar até
diminuindo. Um estudo divulgado recentemente pela Universidade Stanford mostra
que, na Califórnia, os riscos de um indivíduo ser atacado caíram 91% desde
1950, apesar do aumento da população global e do uso mais intensivo da praia
como local de lazer. Mesmo surfistas, mais propensos ao olfato dos tubarões,
por motivos óbvios, são presas raras. Campeonatos profissionais de surfe são
disputados desde 1976. O ataque a Fanning foi o primeiro a um atleta durante
uma competição. Diz Renato Hickel, diretor da WSL, a liga mundial de surfe:
"Um caso isolado como esse não vai interferir no calendário do circuito. É
prematuro pensar na exclusão da etapa. Nossa atenção é com o aumento de
patrulhamento, mais jet skis, drones e a colocação de tornozeleiras que
funcionam como repelente de tubarões".
Números
O risco
de morrer (nos EUA) em um ataque de tubarão é de: 1 a cada 3.748.067 mortes
Já o de
ser atingido por um raio: 1 a cada 3.748.067 mortes
...em
um acidente aéreo: 1 a cada 79.746 mortes
...afogado:
1 a cada 1.134 mortes
...em
um acidente de carro: 1 a cada 84 mortes
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