"A
água encontra o caminho." Um dos provérbios mais usados na Turquia, sobre
como as coisas se ajeitam por si só, sem precisar de interferências, traduz a
crença dos quase 500 estrangeiros que foram ao país em julho, em meio a uma
crise institucional, para atravessar da Ásia à Europa, a nado.
Um mês
antes da 28ª edição da travessia do estreito de Bósforo, um atentado terrorista
havia matado 44 pessoas no principal aeroporto de Istambul, capital turca.
Uma
semana antes do evento, as Forças Armadas do país tentaram tomar o poder. Áreas
turísticas também foram alvo de bombas nos últimos anos.
No
barco que leva atletas da costa europeia para a asiática, onde pularão na água
e traçarão o caminho de volta, é difícil deixar de pensar que centenas de
gringos indefesos em suas roupas de banho seriam um bom alvo. Mas o único
estampido é o da arma que anuncia o início da nova prova.
Antes
de começar, dois locais conversavam. "A melhor corrente, que vai te levar
mais rápido para o outro lado, é a mais gelada", ensina Deniz Takip, 63,
que há 20 anos cai na água todo verão.
Nos
primeiros minutos da prova, a água vira uma verdadeira piracema, coalhada de
braços e pernas batendo uns contra os outros.
No
entanto, logo o competidor se vê sozinho no mar urbano. De um lado, castelos,
rodovias e restaurantes. Do outro, a natureza ainda um pouco selvagem da Ásia.
Bem no meio disso tudo, a tal corrente gélida.
São
sete quilômetros de travessia que, com a ajuda da corrente a favor, são
reduzidos a "minguados" 4.000 metros –ou uma hora e meia no nado de
alguém mais ou menos dedicado.
No meio
da água cristalina, a fauna do encontro do mar de Mármara com o mar Negro.
Sortudos relatam encontros com golfinhos –o projeto de atleta que fez esse
percurso, porém, só cruzou com manadas de águas-vivas, de um tipo que não
queima, e um peixe meio perdidão.
Em
1810, o poeta Lord Biron (1788-1824) fez o mesmo percurso. Mas, na época dele,
não havia os jet skis e barcos que acompanham o trajeto. Caso o sujeito queira
desistir, é só tirar sua touca e rodá-la que o socorro aparece.
A
travessia ganhou caráter de evento oficial em 1989, com três dezenas de
aventureiros caindo ao mar. Atualmente, são 1.500 atletas, um terço deles de
fora da Turquia. É o único momento do ano em que navios param de cruzar o estreito,
uma rota mercantil pela qual transitam bilhões de dólares e euros em
mercadorias.
OLÍMPICOS
Atletas
convidados, como o australiano Ian Thorpe, recusam-se a cair na água com os
outros participantes. Afinal, a imprevisibilidade das correntes poderia fazer
até um campeão olímpico (Thorpe tem cinco medalhas de ouro, duas de prata e uma
de bronze) acabar perdendo para um nadador de fim de semana. O mar está sempre
para azarões.
Se bem
que é raro ter alguém ali desavisado. O Comitê Olímpico Turco, que organiza o
evento, pede uma quantidade kafkaniana de documentos (a cópia do diploma de um
professor de natação que ateste a capacidade do atleta é só um deles). As
inscrições, feitas pela internet, esgotam-se tão rápido quanto ingressos para o
show do Coldplay.
Os
turcos usam a visibilidade da atração para reforçar seu viés olímpico. A
dificuldade burocrática, a distância e a falta de divulgação tornam o evento
quase virgem de brasileiros. O único outro inscrito do país, um dentista de
Santa Catarina, cancelou a ida.
Saio da
água com um quilo e um sonho a menos, tiritando. Mas é só frio mesmo, a paúra
do terror se dissolveu na endorfina e nas águas do Bósforo.
TRAVESSIA
TRANSCONTINENTAL DO BÓSFORO
Onde Istambul
Mais bogazici.olimpiyatkomitesi.org.tr
Onde Istambul
Mais bogazici.olimpiyatkomitesi.org.tr
Por CHICO
FELITTI COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM ISTAMBUL
Site de
origem da notícia http://www1.folha.uol.com.br/turismo/2017/05/1886985-nadadores-cruzam-da-asia-para-a-europa-pelas-aguas-geladas-da-turquia.shtml?cmpid=compfb
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