Nadador
baiano relata sacrifícios feitos ao longo da carreira, inclusive pela família,
e comemora inédito título mundial da Copa do Mundo de Maratonas Aquáticas
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Acorda.
Levanta. Vai para escola. Não para quieto dentro do carro. A cadeira é uma
adversária na aula. Volta para casa. Troca de roupa. Corre pela casa. A mãe se
vê desesperada. O pai tenta controlar. A irmã não consegue estudar. Nem a
televisão segura. A pediatra, então, sugere um esporte. Ufa! O menino de sete
anos parece ter pilhas eternas, mas aceita a indicação. Tentativas aqui,
tentativas ali, a natação se torna o ponto de fuga de tanta energia - e o
alívio para a família. O ritmo diminui, a reserva energética passa a ser
canalizada e o esporte se torna profissão. Dezoito anos após a indicação - já
na maioridade como um nadador -, Allan do Carmo não tem mais problemas com a
hiperatividade. Se antes ele causava dor de cabeça por não conseguir parar
quieto, agora sofre com a agenda lotada de compromissos e a necessidade de
descansar. Bônus e ônus de um campeão mundial.
Qual o
segredo para se chegar a um título mundial? Se esta fosse uma fórmula
conhecida, o status seria comum. Poucos conseguem tal façanha. Não há uma
receita pronta, mas conhecer um pouco da história de Allan do Carmo ajuda a
entender que são necessários sacrifícios, dedicação e muita participação
familiar para chegar a este posto nobre. Não fosse isso, ele teria onde
extravasar a hiperatividade, mas não entraria para a história como o primeiro
brasileiro a ser campeão da Copa do Mundo de Maratonas Aquáticas.
O
torneio mundial - que é disputado em diversas etapas ao longo do ano - teve
início em 2007, uma década após Allan do Carmo encontrar nas piscinas de um
clube em Salvador um paliativo para sua agitação. Ele estava com 17 anos e era
somente um adolescente em meio a homens formados e acostumados à maratona
aquática. Mas não se intimidou. Desde a estreia na Copa do Mundo, Allan tem
sido o brasileiro melhor colocado ao final da temporada, superando nomes como
Luiz Lima e Carlos Pavão.
Foram
oito anos de tentativas de conseguir o primeiro título mundial. Enquanto remava
pelo mundo, via Poliana Okimoto e Ana Marcela Cunha dominarem o circuito no
feminino. O primeiro título de uma brasileira foi em 2009. Allan bateu na trave
algumas vezes. Em 2008, foi o quinto melhor. No ano seguinte, ficou com o
vice-campeonato. Já em 2010, 2012 e 2013, terminou a disputa na terceira
colocação. O jejum, enfim, encerrou-se nesta temporada.
- Foi
uma crescente. A gente tinha Luiz Lima, que sempre vinha brigando mundialmente,
tinha Pavão, Guilherme Bier. Eu cheguei numa segunda leva de atletas e vim
crescendo há vários anos, com medalha em Pan-Americano, Mundial... Acho que
veio no momento certo. A gente só tem a evoluir cada vez mais, como a gente já
veio evoluindo há vários anos, e esperar melhores resultados - acredita.
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O
título mundial foi conquistado com autoridade. Nas oito etapas do circuito
foram sete campeões diferentes. Somente o próprio baiano conseguiu subir no
degrau mais alto mais de uma vez. No fim das contas, ele levou o troféu para
casa com 121 pontos, enquanto os alemães Thomas Lurz e Christian Reichert
tiveram, ambos, 88.
Mesmo
acreditando que a maratona aquática ainda não tem o reconhecimento necessário
no Brasil, Allan mudou completamente sua rotina ao retornar de Hong Kong, onde
sacramentou o título. Tudo bem que a repercussão não foi a mesma de um mundial
conquistado dentro da piscina, mas ele se tornou uma celebridade em Salvador.
Na
chegada, festa no aeroporto, imprensa presente e desfile no caminhão do Corpo
de Bombeiros. No dia seguinte, encontro com o governador Jaques Wagner. A folga
foi curta, e os treinos logo voltaram. Mas, em vez de ir para casa descansar no
tempo livre, uma maratona de entrevistas. Participações em programas de rádio,
gravações para televisão, jornais e compromissos com patrocinadores.
O dia a
dia se tornou diferente e mais corrido. Em meio à agenda lotada, ele atendeu ao
GloboEsporte.com entre uma sessão de treinamento e a consulta com o psicólogo.
Antes de iniciar a entrevista, pediu um tempo para retirar a camada de protetor
solar do rosto. Os treinos, sob o comando de Rogério Arapiraca, costumam
começar às 7h e só terminar quase 10h. Por isso, o cuidado excessivo com a
pele. Enquanto esfregava o sabonete no rosto, questionava ao repórter se o
local ainda estava muito branco. Com a pele limpa, correu rapidamente para
preparar o suplemento nutricional e comer a marmita de frutas preparada pela
mãe na noite anterior. Tudo feito rapidamente para que a entrevista pudesse
ocorrer naquele pequeno período livre.
FOTO 3 Nadador
brasileiro foi o único a ganhar duas etapas da Copa do Mundo nesta temporada
(Foto: Divulgação / CBDA)
- Minha
rotina mudou bastante desde o dia que cheguei aqui em Salvador. Passei a última
semana aí, até para treinar, foi um pouco mais difícil, um desgaste maior por
causa dos compromissos. Foi muito prazeroso, teve essa mudança de rotina, mas
foi uma coisa de aproveitar o momento, de comemorações, de prestígio, de
reconhecimento. Tudo tem que voltar ao normal, porque as competições seguem. Eu
aproveitei esse primeiro momento, o reconhecimento é muito bom, mas não dá para
a gente se acostumar, se acomodar com isso. Os objetivos são muito maiores do
que esse. A gente tem as Olimpíadas aqui em 2016, e agora o foco já mudou -
garante o nadador.
O
pensamento a longo prazo foca os Jogos do Rio de Janeiro, mas o treinamento
forte na Associação Cultural e Esportiva Braskem (Aceb) tem um outro objetivo.
Allan quer terminar 2014 com a tríplice coroa da maratona aquática: campeão
sul-americano, campeão mundial e campeão brasileiro. Para isso, resta apenas
confirmar o título no nacional.
A
conquista continental foi em maio deste ano, na Venezuela. Para o Brasileiro,
um facilitador. Líder do circuito com quatro vitórias em quatro provas, ele
precisa de um terceiro lugar nas duas últimas etapas. E o destino tratou de dar
uma mãozinha. As disputas serão na Bahia, na praia de Inema, na Base Naval de
Aratu, nos dias 13 e 15 de novembro, local bem conhecido de quem foi criado nas
águas baianas.
FEIJOADAS,
SELEÇÃO E ADAPTAÇÃO FAMILIAR
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Aquele
menino hiperativo da década de 90 conseguiu atravessar o tempo e hoje dá sinais
no maduro Allan de 25 anos. Mesmo nadando, consegue conversar com o treinador
sobre o tempo na piscina. Entre uma braçada e outra, uma pergunta ou
brincadeira. Manter-se parado em uma única atividade é complicado. Até mesmo na
entrevista ele não se desliga. À beira da piscina e com a visão atrapalhada
pelo sol e dezenas de mesas e cadeiras, enxerga a massagista passando longe.
- Vou
te ligar mais tarde - grita antes que o repórter faça mais uma pergunta.
Foi por
essa disposição em excesso que ele se encontrou com a natação. Antes tentou até
o judô, mas reclamou em casa que não gostava de apanhar. Na piscina, se
encontrou. Lá também, deixou aflorar ainda mais o lado competitivo. Qualquer
atividade era encarada como uma competição. Chegar na frente do companheiro de
treinamento era motivo de comemoração e chacota. Daí para levar a sério o
esporte foi um pulo.
- Como
eu era muito ativo e muito competitivo, era uma coisa que eu gostava, de estar
vencendo, ganhando medalhas, troféus. Essa competitividade eu trouxe até hoje
comigo. Essa coisa do dia a dia, de estar treinando, de ter a adrenalina dos
treinos, a adrenalina da competição, sair vitorioso. Isso é uma coisa que
sempre me agradou muito durante esses anos e é um dos motivos que me fez
continuar, não pensar em desistir, seguir a carreira no esporte - justifica.
Também
foi natural o encontro com a maratona aquática. As provas no mar sempre foram
uma tradição na Bahia. Allan começou com disputas de 400m e 800m. Eram provas
mais curtas antes das “travessias” em Salvador. O primeiro grande desafio foi
no ano de 2004. Aos 14 anos, ele nadou a Travessia a Nado Mar Grande-Salvador.
São 12 quilômetros em linha reta entre a Ilha de Itaparica e o Porto da Barra.
Na estreia na principal prova em mar aberto do país, Allan ficou na terceira
colocação.
FOTO 5 Allan
do Carmo recebe orientações de Rogério Arapiraca em prova em Salvador (Foto:
Raphael Carneiro/Globoesporte.com)
O bom
desempenho deu fôlego para que voos maiores fossem planejados. Durante o ano,
foram 10 viagens pelo Brasil para participar do circuito nacional. O problema é
que nem sempre ele tinha o dinheiro necessário para garantir presença nas
provas. E aí a família fazia sua parte. Mês a mês, os pais, tios e amigos
organizavam eventos na casa do nadador. Normalmente era uma feijoada para
arrecadar recursos. Bingos, doações e vaquinhas eram somados para pagar
passagem e hospedagem. Sem tantos recursos, a maioria das viagens era feita sem
um acompanhante.
O
esforço deu resultado e, no final da temporada, Allan conseguiu a classificação
para o Campeonato Sul-Americano Juvenil de Maratona Aquática. Lá se vão dez
anos desde que o primeiro enxoval da seleção brasileira foi aberto com o brilho
no olhar do adolescente. Desde então, a coleção do uniformes não parou do
crescer. O esporte ganhou status olímpico e tornou-se profissão. Mas o brilho
continua o mesmo.
- Foi
uma evolução muito grande, um amadurecimento muito grande que eu tive, uma
evolução de resultados também. Além de o esporte ter crescido bastante, ter
virado olímpico, a visibilidade foi outra, a profissionalização. Hoje a gente
tem toda uma estrutura montada pela Confederação de terapeuta, massagista,
treinador, nutricionista, massagista, psicólogo... Essa profissionalização do
esporte fez com que ele evoluísse bastante - opina.
Essa
evolução do atleta exigiu que toda a família contribuísse mais uma vez. O pai,
Walmir Mamedio, formou-se em gastronomia e aprimorou as refeições dentro de
casa. A alimentação é acompanhada de perto por um nutricionista e o que serve
para Allan é regra para todos da casa.
FOTO 6 Os
familiares do nadador precisaram se adaptar ao novo estilo (Foto: Satiro Sodré
/ SS Press)
- O que
é feito para mim reflete em toda a família, como se fosse um espelho. Hoje
minha mãe tem que acordar 4h30 para me ajudar no café da manhã, no almoço. No
início, foi muito difícil de mudar. A gente foi mudando aos poucos para ir se
acostumando. Hoje a gente está bem adaptado a isso, está acostumado. É uma
coisa comum. Acho que, quando a gente quer alguma coisa, tem que se adaptar ao
meio. Isso foi uma coisa que eu sempre quis, meu pai sempre me apoiou, minha
mãe sempre ao meu lado. A rotina mudou, tudo mudou bastante, e eu sou feliz por
causa disso - comemora.
Mas não
foi tão fácil assim fazer essa mudança. Além da disciplina na alimentação,
Allan precisou abrir mão de muitas coisas ao longo da carreira. Viagens
escolares, festas na adolescência, almoços, jantares e muito mais ficaram para
trás. Até mesmo a namorada tem que compreender a divisão entre ela e a natação.
- É uma
situação difícil. Tem que estar com o psicológico muito bom. Já passei por
momentos difíceis, mas hoje tenho um acompanhamento psicológico muito bom que
me ajuda quanto a isso. São fases que a gente passa e quando vem o resultado
você fala: “Não, valeu a pena abdicar, deixar de fazer isso ou aquilo para
chegar onde estou hoje”.
EM
BUSCA DO SONHO OLÍMPICO
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Depois
de tanto sacrifício e de chegar ao auge da carreira, Allan não tem dificuldade
para encontrar motivação. Com o título mundial, o nadador se tornou favorito
para conquistar o prêmio de melhor nadador de maratona aquática em 2014. O
baiano compete ao lado de Evgeny Drattsev (RUS), Thomas Lurz (ALE), Axel
Reymond (FRA), Tomi Stefanovski (MAC) e Ferry Weertman (HOL). O vencedor será
definido em uma votação que envolve dirigentes, confederações nacionais e
jornalistas especializados. O resultado e a entrega do prêmio serão no dia 1º
de dezembro.
Poucos
dias após a cerimônia, ele terá uma prova de fogo que poderá levá-lo ainda mais
longe. No dia 7 de dezembro será realizada a seletiva 10 quilômetros para o
Mundial de Kazan (Rússia) em 2015. Os dez primeiros colocados na competição nas
águas russas estarão classificados automaticamente para os Jogos Olímpicos. No
ano passado, ele foi o sétimo colocado na prova olímpica de 10km no Mundial,
que aconteceu em Barcelona. Para o ano que vem, caso consiga a classificação, a
esperança é ainda maior.
- Caso eu
me classifique, o primeiro objetivo vai ser chegar entre os 10 para classificar
para as Olimpíadas. Agora, com esse título, aumentam as esperanças de não só
classificar, mas de beliscar ali uma medalha - sonha o nadador.
Em
busca desta meta, Allan continuará nadando em Salvador e perto da companhia dos
pais. Mas não foram poucas as oportunidades de deixar a capital baiana. O
atleta recusou propostas para deixar o estado por acreditar que pode se
concentrar, treinar e render ainda mais estando perto de casa.
FOTO 8 Com
lembrança do bronze no Pan do Rio, além sonha com ouro nas Olimpíadas de 2016
(Foto: Raphael Carneiro)
Assim,
ele tenta retornar à sua rotina. Não quer se ver longe dos holofotes, mas
também luta para que o sucesso não atrapalhe seus planos. Agradece o carinho
dos torcedores, mas não quer ser esquecido logo no próximo mês. É por isso que
a rotina da família foi alterada. O título mundial é só um degrau na carreira
do nadador. A hiperatividade encontrou uma companheira. Talvez seja pela
energia dela que Allan gira os braços cada vez mais rápido pelo mundo. Só vai
ser difícil controlar a agitação se ele conseguir o único título que lhe resta.
- Acho
que todo atleta sonha em ganhar uma medalha olímpica, e o meu sonho não poderia
ser diferente. Ainda mais com esse currículo que eu tenho, de ter participado
de todos os pódios de provas internacionais. O único que falta é o pódio
olímpico. Eu vou sonhar durante esse último um ano e meio, um ano e sete meses,
para poder tentar realizar esse meu sonho - finaliza.
FONTE
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